terça-feira, 1 de outubro de 2024

Eles começaram a entregar menos que o mínimo

 Era uma vez uma mulher levemente neurótica, pagodeira, alegre, marrenta e que está solteira há 84 anos por dificuldade de encontrar um parceiro compatível.

Vez ou outra ela começa a se questionar se realmente sua lista de exigências não está longa demais ou se está beirando a intolerância ou se já se fechou por não acreditar mais... enfim, esses pensamentos que ocorrem quando seus planos não estão muito dentro do que você esperava.

Eis que um belo sábado, foi convidada por uma amiga recém-solteira a ir a um show de pagode de um de seus cantores favoritos, o herói romântico, nosso Pericão.

O show foi maravilhoso, a cia perfeita, a cerveja descendo gelada. Acabou. Elas não queriam ir embora. O DJ largou-lhe o funk de qualidade mais duvidosa possível e elas se jogaram na pista, como se não houvesse amanhã e nem ninguém.

Os funcionários já faziam a limpeza do local, o evento já estava realmente no fim, quando se aproximou um grupo de amigos em uma despedida de solteiro. Acontece que um deles conhecia a amiga e começaram a papear.

Ao avistar um dos amigos com uma camisa do Atlético, teve que ir zoar, como boa Cruzeirense que é. O assunto se engatou de uma maneira inexplicável. Não sei quanto tempo a conversa durou, mas parecia ter durado umas 3h ininterruptas sobre futebol (em nível mineiro e nacional), uma troca sobre estados, sobre festa, sobre família, os assuntos apenas iam surgindo palavra após palavra sem nenhum tipo de esforço ou pausa constrangedora. Parecia que se conheciam há anos! Aquele tipo de conexão que só se encontra once in a blue moon.

Pulando meros detalhes desimportantes, o casal terminou a noite numa intensa troca de carícias e dormiram de conchinha no apartamento dele. 

- Que loucura! - os dois diziam um para o outro. - Como isso aconteceu?

Ele constantemente afirmava sua admiração por ela, reforçando sua beleza - ambas, interna e externa -, sua força, seu caráter. Pensou em nome de filhos, questionou qual seria o time das crianças. Dizia que aquilo não seria só ali, que eles teriam muito mais pela frente. Ela achava fofo e perigoso ao mesmo tempo. Já era macaca velha, não tinha sido a primeira vez que um homem a exaltava e depois a empurrava do pedestal. Ficou por ali entre o medo de se entregar a esssa loucura e um desejo de deixar de ser tão desconfiada, de baixar a guarda.

Os dois viajaram à trabalho durante a semana. Ela, viciada em redes sociais, achou que o contato estava sendo muito esporádico, mas ao aparecer, ele aparecia bem.

Perguntou se ela voltaria no sábado e reebeu resposta afirmativa. Queria vê-la de qualquer jeito. 

- Vou cozinhar para você! Quero te conhecer melhor. Faço um risoto, tomamos um vinho. Aquele dia estávamos cheios da cachaça, mas dessa vez quero realmente te conhecer.

Embora soubesse que chegaria cansada de viagem, ela sentia vontade de revê-lo. Estava há 4 anos sem sentir nada por ninguém e aquilo tinha realmente sido diferente. Queria ter a coragem de baixar a guarda.

O vôo de volta atrasou e tiveram que fazer uma parada técnica em outra cidade. Ela avisou que chegaria 1h30 mais tarde do que o previsto. Ele disse que queria vê-la mesmo assim, que não tinha problema, que se ela chegasse 3h30 da manhã, ele ainda assim a estaria esperando.

Se sentiu lisonjeada e ficou mais ansiosa para vê-lo. Fazia tempo que alguém não parecia estar fazendo tanta questão de estar com ela.

Chegou em casa, largou as malas e correu para o banho. Se perfumou, retocou a maquiagem, colocou uma roupa bonita e foi encontrá-lo.

Eram 23h quando ela estacionou e pediu ao porteiro que interfonasse.

Ele demorou a atender. O porteiro comentou que ele estava com voz de sono.

Pensou: "o coitado deve ter dormido enquanto me esperava". Se compadeceu. Subiu.

Ao abrir a porta, ficou sem entender.

Sentiu um cheiro que só sentira quando frequentava festas open bar na faculdade: aquela mistura de odores de diferentes tipos de álcool.

Ele estava completamente embriagado. Exalando álcool. Mal se aguentando em pé. Os olhos tentavam fitá-la, chegou a elogiá-la - sua roupa, seu cheiro, seu abraço -, mas a verdade é que as piscadas estavam mais longas do que deveriam estar.

Ela sugeriu que ele tomasse um banho e esquecessem o risoto com vinho. Pedissem uma pizza.

Pensando bem agora... foi legal até demais!

Ele foi pro banho e voltou, deitando na cama, ao lado dela que o esperava - cansada e com fome.

Proferiu frases soltas como:

"Gatíssima... você já sabe né: eu, você, dois filhos e um cachorro" - disse ele, aparentemente reforçando o interesse.

"É... até que você faz o perfil da galera" - disse ele, como se a analisasse, vendo se ela cabia na vida dele e se daria bem com seus amigos.

"Dorme aqui comigo, por favor?" - disse envolvendo-a nos braços, implorando pela oportunidade de finalmente cair nos braços de Morfeu, mas sem conseguir ser "totalmente transparente", como havia dito fazer parte de sua personalidade.

Dormir? Se dormisse com ele, viraria pedra. Era difícil acreditar que ele tinha a feito se sentir tão especial e tão merda ao mesmo tempo, em um espaço de tempo tão minúsculo. Foi de 8 a 80 em 18 segundos.

Quando falamos que o mínimo não está sendo entregue, nem estamos falando de banho, sobriedade e manter-se acordado. Isso aí nem deveria entrar na matemática.

Pois bem. Aí estamos diante de alguém que não entregou o menos que o mínimo, que seria receber alguém em casa acordado, minimamente sóbrio e de banho tomado.

Primeiro se sentiu mal. 

- Caramba. Será que eu era tão NADA assim para ele, para que ele achasse que eu não merecia nem o mínimo esforço? 

Depois se corrigiu. Aquilo não tinha nada a ver com ela. Estava mais que ciente do esforço que costumava colocar numa relação e, por consequência, do esforço que merecia que lhe oferecessem.

 Oras... ela não poderia de forma alguma se rebaixar ao nível de aceitar que um homem, em um segundo date, tivesse a grande falta de respeito de esperá-la daquela maneira. Já tinha aceitado migalhas antes e prometera a si mesmo nunca mais se submeter aquilo novamente.

Então levantou-se e retirou-se. Deixando-o jogado nu na própria cama, sem muita dignidade, possivelmente se perguntando se aquilo tinha sido verdade ou algum delírio etílico.

Enquanto dirigia para casa, sua cabeça borbulhava de coisas que pensava, sentia, ensaiava dizer.

Ela tinha certeza que uma mensagem chegaria no outro dia. E chegou.

- My bad. Etilismo.

As desculpas sinceras que ele foi capaz de oferecer. E a partir dali, seria impossível reagir, questionar, lutar, falar qualquer coisa que não fosse... "É, né".

Autossabotagem? Falta de caráter? Machismo? Falta de responsabilidade afetiva? Falta de respeito por outras pessoas? Egoísmo? Tudo junto?

Não ficaria ali para descobrir. Nem era seu papel. Cada uma deve ser responsável por suas próprias atitudes e ali não era seu lugar.

E voltou a não se questionar novamente. Porque toda vez que baixava a guarda, vinha mais um para provar que ela estava certa. O tempo todo. 

"Eu sou bem melhor sozinha, sabe..."