sábado, 4 de janeiro de 2020

A nossa suposta missão de transformar os homens em... homens


Olhem bem para essa imagem e seus detalhes. Tem tanta coisa errada nela que eu mal sei por onde começar.

Primeiramente, o que é uma mulher feminina? Desde o começo do movimento feminista a discussão sobre feminilidade começou e até hoje não ficou muito claro na cabeça de muita gente que ser mulher não tem nada a ver com o modo de se vestir, falar, andar etc. Aliás, a própria expressão "ser feminina" é uma total criação da sociedade conservadora para te convencer de que para ser mulher você precisa ser delicada, falar baixo, usar só vestidos e saias, maquiagem, jóias, enfim, parecer uma princesa da Disney. Mais uma forma de exercer poder e controle sobre a sua vida. A frase "Feminina sim, feminista nunca" é espalhada por aí como uma ideia de que as mulheres feministas são todas iguais: não depilam, tem cabelo Joãozinho, só usam roupa larga, bebem cerveja e amassam a lata, arrotam em público, odeiam maquiagem. Tentam te convencer disso e muitos acreditam. O movimento feminista é sobre escolhas. E isso implica também o seu estilo pessoal de comportamento e vestimenta. Faça como quiser. É disso que estamos falando. Você achar que não existem feministas que amam maquiagem, têm zero pêlos no corpo, são delicadas etc, é prova cabal de que você realmente não conhece o feminismo. É pura ignorância sobre o assunto.

A segunda coisa que me chama atenção é a imagem de uma moça segurando um bebê com todo amor do mundo. Como se, para ser mulher de valor, para ser feminina, você precisasse necessariamente ter filhos. É preciso separar a mulher da obrigação de reproduzir. Nós não somos apenas potenciais mães. Existem muitos sonhos dentro de nós que podem ou não incluir filhos. Muitas mulheres têm filhos sem nem pensar se REALMENTE querem, porque cresceram com essa expectativa sobre suas cabeças e de repente não reproduzir parece uma ideia muito absurda. Acreditem, vocês tem escolha. Você é um ser humano completo. Não ter um filho não vai te deixar incompleta. O que nos deixa incompletas é abrir mão de sonhos reais e viver uma vida frustrada. Tenha filhos ou não, SE QUISER. Muitas mulheres feministas têm filhos e os amam com o mesmo amor de mulheres que não se consideram feministas. Achar que feministas são contra o ato de reproduzir é mais um traço da ignorância sobre o movimento.

O terceiro ponto, claro, são essas frases absurdas de que "mulher transforma homem" e de que "homem vira homem diante de uma mulher feminina". Porque essa ideia se espalhou por aí, encontramos tantos homens infantis aos 30. Homens que não se vêem na obrigação de amadurecer até que encontrem uma esposa - ou seja, uma segunda mãe - que diga para eles o que tem que fazer para deixar de ser menino e virar homem. Desde pequenas ouvimos que as meninas amadurecem mais rápido. Isso não é biológico. Isso é social e só existe porque é exigido muito mais comportamentos responsáveis de meninas do que de meninos, desde pequenos. As meninas sempre tem que ter letra bonita, caderno organizado, material impecável, notas boas, brinquedos bem cuidados, quarto arrumado, não arrotar, sentar com a perna fechada "que nem mocinha", ajudar nas tarefas domésticas, e por aí vai. A lista é infinita. Sem ter responsabilidades, não é de se estranhar que homens demorem muito mais para amadurecer do que mulheres, não é mesmo? O amadurecimento de qualquer pessoa passa diretamente por ter que lidar com responsabilidades, com situações adversas, com experiências diferentes, com a necessidade de enfrentar problemas. E se os nossos meninos não são expostos a isso, continuaremos a ter uma sociedade com moleques de 25, 30, 40 ou 50 anos.

Outro problema dessas frases é o peso nas costas das mulheres. Essa síndrome de Mulher Maravilha que acabamos abraçando como missão. Quantas de nós já conhecemos um cara estragado e achamos que, com nosso amor, carinho e dedicação, iríamos transformá-lo num príncipe? Provavelmente todas nós passamos por isso alguma vez na vida. Quase que 100% das vezes o resultado é um belo par de chifres na cabeça, um relacionamento abusivo ou algo parecido. Nós não somos mecânicas para consertar carro quebrado. Nós merecemos um carro zero. E no momento em que compreendermos que não é função de ninguém arrumar a vida do outro, vamos parar de aceitar menos do que merecemos. Entenda: ninguém conserta ninguém além de si mesmo. Se a pessoa quer mudar, evoluir, melhorar, amadurecer, é responsabilidade dela. Estar cercado de pessoas que apoiem, que incentivem e motivem é ótimo, mas nenhuma mudança vai ocorrer se a própria pessoa não quiser e não se esforçar. Tem que partir dela, independente de gênero ou orientação sexual. Essa história de transformar homem é só mais uma responsabilidade que querem atirar para nós, para que os homens mais uma vez possam se eximir das consequências dos seus atos e as mulheres continuem sendo a grande fonte de culpa da sociedade.

Depois de tantas reflexões possíveis sobre uma única imagem com frases aparentemente inofensivas, é inevitável não me preocupar com o rumo em que as relações tomam ainda hoje, no século XXI. É tão antiquado, tão inapropriado, tão sem sentido esperar que o outro tenha a missão de me curar das minhas infantilidades, que eu me pergunto se algum dia vamos de fato alcançar a igualidade de gênero pela qual tanto lutamos. Se até em nossas próprias vidas pessoais ainda há tanto a se alcançar, quando vamos conquistar direitos sociais mais justos? Conquistaremos?